A cultura preta ainda está no quase

A cultura preta ainda está no quase
Festival Batekoo 2023 (Divulgação)

Chegou novembro! Se você é uma pessoa preta inserida de alguma forma no mercado de trabalho, sabe bem o que isso significa, não é? Talvez você tenha uma oferta maneira de alguma marca empoderada para criar um conteúdo rico sobre negritude (nunca aconteceu comigo diretamente, mas já vi acontecer com pessoas amigas nos últimos anos) ou a chefia da empresa onde você trabalha, engajadíssima com o ESG, convide você - como a única pessoa preta da equipe - para desenvolver uma ação sobre cultura preta ou racismo para os demais funcionários (isso já aconteceu comigo). Não importa o contexto, sabemos que novembro traz uma montanha-russa de ações pontuais, opiniões, textões e toda sorte de eventos e polêmicas inusitadas.

Quando falamos de entretenimento, em especial, surgem inúmeras questões profundas. Discutir cultura preta e, principalmente, racismo no Brasil é falar sobre uma estrutura sistêmica que parece cristalizada, mas que precisa ser confrontada, não apenas em novembro, mas todos os dias.

O famoso o buraco é mais embaixo soa muito bem aqui e, no caso do nosso país, trata-se de uma questão extremamente mal resolvida.

Neste mês, aqui nesta newsletter, quero abordar alguns aspectos relacionadas à disparidade racial nesses espaços, especialmente o da música, que é minha área de estudo. Gostaria de apenas celebrar nossa cultura e todas as pessoas que a criam e mantêm viva diariamente, reforçando sua riqueza e como ela é a base do que chamamos hoje de Brasil. No entanto, com tantos retrocessos que esses espaços têm evidenciado ano após ano, sinto a necessidade de usar esta minha bolha para discutir assuntos que, para muita gente, pode ser desconfortável. E, sinceramente, essa é a intenção.


Uma temporada que passou

Em 2020, quando um mundo pandêmico assistiu ao assassinato de George Floyd, a indústria da música e do entretenimento, foi questionada por meio da campanha #TheShowMustBePaused. A iniciativa foi liderada e criada por duas executivas negras: Jamila Thomas, então diretora de marketing da Atlantic Records, e Brianna Agyemang, ex-executiva da Atlantic. O objetivo era chamar atenção para a necessidade de conversas francas e mudanças reais. No entanto, como era de se esperar, a ação acabou sendo cooptada, resultando em uma avalanche de quadrados pretos nos feeds das redes sociais, acompanhados pela hashtag #BlackOutTuesday, esvaziando, assim, o propósito inicial do diálogo proposto.

Ainda assim, essa movimentação trouxe à tona o racismo enraizado e secular nessas indústrias. Ficou claro que elas precisariam ir além do quadrado preto no feed do Instagram para promover mudanças reais e estruturais, ainda que de forma gradual.

Como Jairo Malta menciona em sua coluna Sons da Periferia, "marcas faziam fila para pegar carona, para dizer que estavam 'do nosso lado'. Em 2021, o Afropunk chegou ao Brasil, o Big Brother teve uma maioria de participantes negros, entre outras iniciativas. Mas agora, em 2024, onde estão todas essas ações? O mesmo mercado que gritou por 'justiça social' agora considera nossa causa 'pesada demais'. Foi apenas uma temporada que passou".

Em tempos de popularização do conceito de ESG e, ao mesmo tempo, do esgotamento do identitarismo - que se transformou quase em um espantalho e até mesmo em algo ofensivo em diferentes espectros políticos, da esquerda à direita - continuamos vendo que, para muitas empresas e festivais, basta ter um corpo negro na sala, mesmo sem qualquer poder de decisão, para criar a ilusão de que já fizeram o suficiente. Ou então, há a negligência total em relação à causa, que, como destacou Jairo, tornou-se "pesada demais".

How To Fix Racism in the Music Industry, By People in the Music Industry
Here’s what people of colour across the music industry would like to see change.
(...) são pessoas brancas que decidem como a arte negra é compartilhada, e muitas vezes isso se baseia em estereótipos. Falta representatividade. O simples fato de que uma pessoa branca ou um grupo de pessoas brancas controla a música negra está enraizado no racismo e no privilégio. Houve muita resistência ao avanço das pessoas negras dentro da indústria musical, e existe uma enorme obrigação para quem está à frente das empresas de música hoje de realmente refletir sobre isso. - VICE

Sempre no quase

Para a edição de hoje, trago alguns textos e reportagens que corroboram as ideias que introduzi, destacando principalmente o imenso lucro que a cultura preta continua a gerar. Porque o problema não é que a cultura preta não dá dinheiro; ela simplesmente não dá dinheiro para pessoas pretas. Há uma percepção, ora implícita, ora explícita, por parte da elite artística branca que domina o mercado musical brasileiro, de que, para nós, nossa cultura e música são ativismo e causa, enquanto para eles são fonte de lucro. Parece que estamos sempre no "quase" ou, como bem relembra a jornalista Nadine Nascimento, no verso de Emicida na música Ismália, de 2019: "A felicidade do branco, é plena. A felicidade do preto, é quase".

E sim, existem pessoas pretas no topo, mas ele é pequeno e restrito demais, comportando apenas casos excepcionais que não refletem a realidade do restante da pirâmide desta indústria, especialmente sua base.


Logo que chegou novembro, muita gente foi surpreendida com o comunicado do perfil da Batekoo, maior plataforma de entretenimento, educação e culturas negras, periféricas e LGBTQIAP+ do Brasil, anunciando que sua edição de 2024, marcada para 23 de novembro, seria cancelada por falta de patrocínio.

O festival Batekoo é, infelizmente, mais um dos eventos dedicados à cultura negra que percorrem e percorreram uma longa jornada para conseguir patrocinadores relevantes.

BATEKOO adia festival por falta de patrocínio e denuncia racismo no mercado publicitário
Sócio da BATEKOO apontou pacto da branquitude no mercado; evento seria no fim de novembro e ainda não tem nova data

Segundo apuração de Nadine Nascimento, o festival Psica, em Belém, Pará, com 12 anos de história, conseguiu patrocínio pela primeira vez apenas no ano passado. "Até 2022, foi tudo na loucura mesmo, na raça, criando estratégias de financiamento, pegando dinheiro emprestado, enfim, tentando financiar o festival enquanto a gente vendia marmita na rua", relata Jeft Dias, idealizador do festival junto com seu irmão, Gérson Júnior. Já a Batekoo, que realizou sua primeira edição como festival em 2022, mas que já promove festas há uma década, chega a 2024 sem patrocínio, o que levou a organização a adiar o evento, com promessa de retorno em 2025. O festival Latinidades, que ocorre em Brasília desde 2008, ainda hoje não tem patrocínio e depende de editais. A Feira Preta, em São Paulo, já acontece há 20 anos e apenas recentemente conquistou patrocínios significativos que impulsionaram seu crescimento. No ano passado, o Salvador Capital Afro não recebeu patrocínio do mercado, mesmo com a realização de mais de 20 eventos culturais e atrações internacionais.

Festivais dedicados à música negra disputam patrocínio em meio a mercado saturado
Com opções mais acessíveis que grandes eventos, organizadores tentam provar relevância e convencer as marcas a investirem

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A invisibilidade da cultura negra nos grandes festivais de música | Fast Company Brasil
Empresas, anunciantes e patrocinadores devem se comprometer com a diversidade e investir em eventos para a valorização da comunidade negra.

Ser preto saiu de moda

Como mencionei, o problema não é que cultura preta não dá dinheiro. Ela gera, e muito. E acredito que os potenciais patrocinadores não pensem o contrário. Na verdade, a questão é: para quais bolsos esse lucro será direcionado?

Para a Folha (e reproduzido no site Geledés), Ciça Pereira, CEO da Zeferina Produções, sintetiza bem essa ideia: o dinheiro vai para "os mesmos de sempre, ou melhor, os herdeiros dos de sempre". Leia: https://www.geledes.org.br/as-culturas-negras-vendem-mas-quem-lucra-com-elas/

Por ironia do destino — ou talvez não —, na mesma semana em que a Batekoo anunciou seu adiamento, o tema da redação do Enem foi "Desafios para a valorização da herança africana" (via @batekoo no Instagram).

Para concluir, trago mais alguns trechos da coluna Sons da Perifa, de Jairo Malta, que chama atenção de forma direta para o fato de que, apesar de a cultura preta ser o "combustível", quem a produz não tem sido mais o foco dos benefícios. Ser preto saiu de moda.

Opinião - Sons da Perifa: Por que ser negro saiu de moda e como a pauta foi descartada pelas marcas
Esse não é um texto sobre Vinícius Júnior ou Jojo Todynho; é sobre quem sempre lucra com a imagem do negro

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(...) Em 2020, quando o mundo assistiu ao assassinato de George Floyd, o sistema se moveu em direção à "causa negra." Marcas faziam fila para pegar carona, para dizer que estavam "do nosso lado." Em 2021, o Afropunk surgiu no Brasil, o Big Brother teve uma maioria de participantes negros, e tantas outras iniciativas vieram à tona. Mas hoje, em 2024, onde estão todas essas ações? O mesmo mercado que gritou "justiça social" agora acha que nossa causa é "pesada demais." Foi só uma temporada que passou.

(...)

No fim, somos o combustível de uma economia criativa que movimenta bilhões – a mesma que em 2020 gerou mais de 3% do PIB, mas que paga bem aos herdeiros de sempre, não a quem produz a cultura que está à venda. Somos o show, mas o ingresso é deles. Nossos movimentos políticos e identitários viraram produtos de mercado, esvaziados do sentido original, como parte de um sistema que não nos quer no centro, mas sim à margem, como meros enfeites para vender uma imagem.