Aquilo que volta todos os anos

Sobre saudades, aniversários e Rita Lee.

Aquilo que volta todos os anos
Rita Lee (Foto: Marcus Leoni/Folhapress)

Rita Lee vestida de cascavel no palco do Criança Esperança, cantando "Erva Venenosa". Essa é a primeira lembrança nítida que me vem à mente quando penso nela. Antes disso, Rita era uma figura mítica, a mulher de cabelos ruivos e franja que ocasionalmente aparecia na televisão. Era o ano de 2001, eu tinha 12 anos.

Alguns anos depois, tornei-me uma fervorosa espectadora da MTV Brasil, onde aos poucos a figura mítica da mulher de cabelos ruivos e franja foi sendo desvendada.

O "MTV Ao Vivo Rita Lee" chegou em 2004. Já sendo fã de Pitty, acabei assistindo ao programa para vê-las juntas cantando "Esse Tal de Roque Enrow", uma música cuja letra, escrita em 1975, fez todo sentido para mim, uma garota de 15 anos, pois o rock era a única coisa que eu queria saber naquele momento - e minha mãe não entendia nada. Desde então até a vida adulta, o papel de Rita Lee na música brasileira foi se desdobrando ainda mais para mim, embora de forma não muito intensa.

Em 2021, fui convidada pelo Sesc Belenzinho para colaborar na publicação "Álbum: 10 Anos", e a missão que recebi foi escrever sobre o misterioso disco do efêmero duo composto por Rita Lee e Lucinha Turnbull, o Cílibrinas do Éden, que, aparentemente, havia lançado apenas um álbum homônimo (digo "aparentemente", pois na verdade esse disco nunca existiu; leia lá depois).

Durante o processo de escrita, aproximei-me bastante de Rita. Li sua autobiografia, assisti a horas de entrevistas e documentários, ouvi sua discografia e tudo mais que pude consumir sobre ela. Foi um hiperfoco extremo ao longo daquelas semanas.

Uma das coisas que mais mexeram comigo, entre tantas outras, foi a dúvida de Rita sobre seu próprio talento e se deveria continuar na música antes de fazer história em uma carreira solo. Sua autoestima artística havia sido extremamente abalada pelo machismo castrador de talentos femininos.

"A expulsão dos Mutantes não foi um momento tranquilo para Rita. Ela já declarou em diferentes entrevistas e em seu próprio livro que, apesar da tranquilidade posterior, o ocorrido a frustrou e magoou demais. Principalmente ao compreender que parte daquilo se devia, sim, ao fato de ser mulher.

A dúvida sobre seu talento e capacidade técnica a levou para um lugar de insegurança muito comum entre mulheres artistas e a afastou de seu violão durante um período.

De volta à casa dos pais, na Vila Mariana, ganhou tempo de respiro e foi lá que compôs sua primeira música pós-expulsão, a clássica “Mamãe Natureza”. “Não sei se eu estou pirando ou se as coisas estão melhorando” são os primeiros versos da canção que deu a Rita a primeira consciência criativa, que a fez perceber sua autonomia e controle sobre harmonia, melodia, letras e ideias.

A narrativa discorre e denota os questionamentos sobre o seu então presente musical. Ela canta “Não sei se eu vou ter algum dinheiro ou se eu só vou cantar no chuveiro”. Angústia essa que passava por sua cabeça, principalmente após voltar à casa de Charles, seu pai, que dizia firmemente que música era um hobby e não profissão. Enquanto Rita estava ali, sem banda, também se empoderava gradualmente de sua própria criação.

Um bate-volta a Nova York e uma temporada em Londres foram primordiais para a nova fase que estava por vir. Afinal, foi na terra da rainha que Rita, usando hena marroquina, adotou os seus icônicos cabelos vermelhos, adquiriu novos instrumentos e reencontrou amigos como Gilberto Gil, primordial para sua compreensão profunda sobre música brasileira." (Thabata Lima Arruda, 2021).

O pensamento sobre "e se" Rita Lee tivesse "largado mão" pairou sobre mim durante um tempo. Porque para uma mulher, a ideia de desistir é uma constante que carregamos. É como um fantasma que espreita em cada degrau que teimosamente insistimos em subir.

Uma das últimas linhas que escrevi foi: “ainda bem” que Rita não desistiu de sua música, de sua expressão e arte. Ainda bem que se agarrou aos seus ovários e útero para criar e segurar o microfone na ponta do palco.”

Ainda bem, porque o resto é história e bem viva.


Aquilo que se vai

Dia 8 de maio de 2023, Rita nos deixou. Era meu aniversário. Um dia estranho.

Sempre que uma mulher, uma figura pública da importância de Rita, parte, reflito sobre como isso nos afeta, nós mulheres. Na verdade, como me afeta. Devo chorar? Ficar triste? O que devo sentir? Como lidar com a perda de alguém em uma relação parassocial? Não tenho respostas para nenhuma dessas perguntas, apenas sei que aquele dia senti. O mesmo foi com Elza e Gal.

"Quando eu morrer, posso imaginar as palavras de carinho de quem me detesta. Algumas rádios tocarão minhas músicas sem cobrar jabá, colegas dirão que farei falta no mundo da música, quem sabe até deem meu nome para uma rua sem saída. Os fãs, esses sinceros, empunharão capas dos meus discos e entoarão "Ovelha negra", as TVs já devem ter na maga um resumo da minha trajetória para exibir no telejornal do dia e uma notinha no obituário de algumas revistas há de sair. Nas redes virtuais, alguns dirão: "Ué, pensei que a véia já tivesse morrido, kkk". Nenhum político se atreverá a comparacer ao meu velório, uma vez que nunca compareci ao palanque de nenhum deles e me levantaria do caixão para vaiá-los. Enquanto isso, estarei eu de alma presente no céu tocando minha autoharp cantando para Deus: "Thank you Lord, finally sedated".

Epitáfio: Ela nunca foi um bom exemplo, mas era gente boa." (Rita Lee: uma autobriografia. Rita Lee. - 1. ed. - São Paulo: Globo, 2016).

Aquilo que volta todos os anos

Quarta-feira, dia 08 de maio, foi aniversário de morte de Rita e meu aniversário de nascimento. Não soube muito bem como lidar com esse dia, então decidi reler alguns trechos de sua autobiorafia e pesquisar a etimologia da palavra "aniversário".

Segundo alguns dicionários etimológicos da web, a palavra "aniversário" tem origem no termo latino anniversarius, formado pela junção de annus, que significa "ano", e versus ou vertere, traduzido como "voltar" ou "regressar". Portanto, anniversarius tinha o significado de "aquilo que volta todos os anos". Alguns etimologistas defendem que a verdadeira origem do termo está em anno conversus, que também significa "aquilo que volta todo ano".

Aquilo que volta todos os anos. Fiquei refetindo sobre todas as coisas que retornam anualmente, não apenas os aniversários de nascimento ou morte, mas todas as outras ocasiões, boas ou ruins, trágicas ou excepcionais. Porque nesse "aquilo" estão implícitos diversos significados. O que os aniversários trazem consigo? Saudades, celebrações, traumas, lágrimas, festas?

Convencionalmente, aqui nesse canto do hemisfério, celebramos o ano que passou, a data que retorna e completa mais um ciclo de vida. Não é uma celebração voltada necessariamente para o futuro, como o ano novo, por exemplo, porque para quem comemora o nascimento, o foco está em celebrar a vida presente, o fato de estarmos vivos agora.

Achei todos esses significados cínicos e geniais, embora não saiba exatamente por quê.

Quarta-feira completamos um ano sem Rita Lee. No caso do aniversário de morte, não estamos celebrando a vida presente ali, de forma literal, mas sim a oportunidade de voltarmos àquilo que sempre regressa para quem fica: a saudade.

O tempo passa, o mundo desaba e acaba, mas meu desejo de aniversário é que a música nunca deixe de existir. Da Rita, da Elza, da Gal e de tantas outras.

"A minha depressão não é sinal de fraqueza, eu é que fui forte por muito tempo, mas cuidado com a ira de alguém calmo. Abaixo a anarquia. Para conquistar o seu amor, peço perdão mesmo sabendo que não estou errada. Desculpe, eu não estava prestando atenção.

O pior inimigo da criatividade é o bom-senso, mudar, mudar, mudar, nem que seja para pior. Dói mais sorrir na frente dos outros do que chorar sozinha, mas não devo levar a vida tão a sério porque ninguém sai dela vivo. Debochar de mim mesma é uma estratégia que sempre dá resultado positivo. Uma das coisas que mais me dão prazer é fazer o que não devo, tipo fumar na frente de quem faz campanha anticigarro. Não é tarde para ser o que eu deveria ter sido. Eis-me aqui, uma pós-famosa anônima observando os macro e micro-omniversos dentro e fora de mim." (Rita Lee: uma autobriografia. Rita Lee. - 1. ed. - São Paulo: Globo, 2016).

Falando em saudades e grandes mulheres. O selo Trama, fundado por André Szajman e João Marcello Bôscoli, lançaram uma versão inédita de “Para Lennon e McCartney” com a voz de Elis recuperada de arquivos de estúdio datados de 1976 e restaurada com auxílio de avançados programas de inteligência artificial.


Obrigada especial ao amigo Pedro Erler, que apoia essa newsletter lá no Apoia.se. Aproveito para compartilhar aqui o trabalho de Pedro, que é um violonista extremamente talentoso. Indico aqui o seu disco, Serenatero. Uma pesquisa linda sobre o violão sulamericano.