Digas quem te patrocinas, e te direi que tipo de festival és
Quem patrocina o seu festival favorito?
A essa altura, depois de um 2023 que nos atropelou com tantos eventos, podemos concordar que os grandes festivais se transformaram em locais para nos lembrar de marcas, em vez de descobrirmos novos artistas, certo? A música deixou de ser o elemento central ou o objetivo principal, tornando-se um meio para que produtoras vendam espaços publicitários em seus eventos. Esse modelo de negócio, onde nossa atenção é comercializada enquanto consumimos nosso conteúdo favorito, não é novidade.
Os patrocinadores constroem stands temporários para descanso, diversão, aventura, imersão, alimentação, compras, ganhar brindes em troca de dados e, claro, ser sustentável. Eles pautam o awareness e quais histórias contar. Para o público, o pacote é vendido como uma experiência; para as marcas, como ativações.
E quais são essas marcas? Quem patrocina o seu festival favorito? Em um mundo colapsando devido às mudanças climáticas, crises políticas e toda sorte de insanidade, a decisão de se gastar mais da metade de um salário mínimo em um ingresso, deve ir além do show exclusivo do Artista Convida Artista e uma tirolesa?
Nesta complexa esteira, onde somos expostos a mais marcas do que artistas, precisamos que essas perguntas sejam feitas.
Vai aqui um trecho da edição #2. (Sim, é uma auto citação).
Por que festival é um bom negócio?
Para Fernando Alterio, ex-CEO da T4F, um dos pilares mais importantes da indústria do entretenimento são os festivais. Pois, o potencial de venda das cotas de patrocínio é muito superior se compararmos com uma headliner tour ou uma casa de espetáculos.
Não à toa, desde 2019, a estratégia da T4F é a expansão de seus festivais para outras praças. Além da aquisição e criação de novas marcas.
O Lollapalooza foi o principal festival da empresa durante dez anos, mas, a partir de 2024, a Live Nation passa a realizar o evento no Brasil. Por outro lado, a T4F assumiu o Primavera Sound 2023 e as próximas dez edições, que estreou em São Paulo em 2022 com produção da Live Nation.
Com o Primavera a fórmula se repetiu. Levaram a edição 2023 para Interlagos e saíram vendendo cotas de patrocínio sem constrangimento.
Antes de perderem o Lollapalooza, a T4F já havia adquirido o festival Popload, e lançado o GRLS!.
A última aposta da T4F foi o Turá, em São Paulo. O festival foi o primeiro a acontecer no Parque Ibirapuera cobrando ingresso. Prática que agora é autorizada, graças à privatização do parque. Em novembro o festival aconteceu também em Porto Alegre.
De acordo com Diego Parente, gerente de RI da T4F, o cachê artístico e o custo para colocar um show ou festival ‘de pé’ é pago pela venda de ingressos. Depois disso, a T4F ganha na taxa de conveniência dos ingressos, na venda de cota de patrocínio, e de alimentos, bebidas e merch.
Outro ponto que Parente ainda explica é sobre o modelo do caixa da T4F. Que funciona atrelado ao que ele chama de “adiantamento do cliente”. Que é a receita oriunda da venda antecipada dos ingressos.
Ou seja, vocês percebem a loucura?
Quem paga cachê artístico e os principais custos estruturais de um festival é quem compra ingresso. Patrocínio é lucro!
Apenas em 2019, a T4F vendeu R$4 milhões em ingressos. E quando falamos de patrocínio o valor sobe para R$464 milhões (de 2016 a 2019).
A conta dos ingressos cada vez mais caros está apenas na meia-entrada, no preço do dólar, nos cachês altos, na inflação, na gasolina cara, e etc?
Nessa retomada dos eventos, o que vejo é o “modelo T4F” repetido à exaustão. Os festivais são cada vez menos um lugar para descobrir novos artistas, e cada vez mais um local para “conhecer” marcas. Nós compramos ingressos, pagamos os artistas, e temos nosso tempo e atenção vendidas para os patrocinadores.
A tirolesa e a roda gigante não são inocentes.
Case Braskem
Como disse Évelin Argenta, “a Braskem está produzindo a maior tragédia socioambiental urbana do mundo, o afundamento de cinco bairros inteiros”.
Até a primeira quinzena de janeiro, o Tribunal de Justiça de Alagoas possuía abertos 1.099 processos relativos à empresa. O isolamento dos cinco bairros obrigou cerca de 60 mil pessoas a abandonarem suas casas.
Uma área equivalente a 20% da zona urbana da capital alagoana foi afetada pela instabilidade do solo provocada pela mineração de sal-gema pela empresa Braskem. Uma das minas, no bairro de Mutange, se rompeu em dezembro. - Felipe Pontes para a Agência Brasil no dia 18 de janeiro de 2024.
Para ir mais fundo no caso Braskem e ter conhecimento sobre parte das consequências decorrentes da exploração dessas minas, comprovadas por órgão nacionais e internacionais, vocês podem ouvir o episódio brilhante da Rádio Novelo Apresenta sobre o assunto.
A dimensão ainda é incalculável. São cinco bairros inteiros, cerca de 60 mil pessoas atingidas e danos irreparáveis.
A Braskem está fazendo acordo com as famílias atingidas e comprando os imóveis. Ou seja, pouco a pouco, a área central de Maceió se transforma em propriedade da indústria.
A notícia demorou a chegar para a grande mídia. Segundo a pesquisa da Évelin Argenta, para a Rádio Novelo, nem os próprios moradores sabiam dos problemas. Para um dos entrevistados, a propaganda que a empresa tem feito surte efeito.
Na televisão, nos rádios e nas redes sociais, a Braskem investe na divulgação de vídeos narrando sobre todas as medidas que ela tem adotado para proteger os moradores dos bairros de Maceió e seu compromisso socioambiental. Porque, segundo ela, a exploração das minas, feitas entre os anos de 1976 e 2019, nada tem a ver com essa “tragédia”.
O investimento para fortalecer a imagem de empresa com responsabilidade socioambiental chega ao eixo Rio-São Paulo através das ativações em grandes festivais. Ela quer ser lembrada como a marca que distribuiu brindes e reciclou copos e não como a empresa que está produzindo em Maceió a maior tragédia socioambiental urbana do mundo.
Qual o critério para que uma proposta de ativação com o tema reciclagem, apresentada pela Braskem, seja aceita?
À semelhança de outros festivais de música, as marcas viraram quase que uma segunda atração para o público do Lollapalooza Brasil. E neste ano não poderia ser diferente. Trazendo um lineup formado por grandes nomes, como Billie Eilish, Lil Nas X, Twenty One Pilots, Tame Impala, Drake e Rosalía, a décima edição do festival acontece nos dias 24, 25 e 26, no Autódromo de Interlagos, em São Paulo.
Além dos tradicionais ingressos para todos os dias (Lolla Pass) e para cada dia (Lolla Day), neste ano, o Lollapalooza conta com mais uma opção: o Lolla Double, que dá direito a dois dias de evento, sexta-feira e sábado, sexta-feira e domingo ou sábado e domingo. Essa opção tem preços 20% menores do que dois ingressos separados.
Braskem
Em mais um ano, a Braskem estimulará a economia circular no Lollapalooza Brasil. A empresa promoverá uma ação de incentivo ao descarte correto e reciclagem do plástico em estande principal, quatro estações de coleta Rock and Recycle by Braskem e em 15 carrinhos, que se movimentarão pelo festival. Quem descartar os resíduos plásticos corretamente ganhará pontos, que poderão ser trocados por brindes, como pochetes, brincos, sacolas, capas de chuva e dispositivos de assistência virtual. - Amanda Schnaider para o Meio & Mensagem no dia 22 de março de 2023 (grifo meu).
A Braskem é apenas mais uma das empresas que investem bastante para que o assunto veiculado seja sempre sobre os seus feitos, e nunca sobre os seus crimes.
Segundo dados do Mapa dos Festivais, Coca-Cola, Amstel, Heineken, Beefeater e Budweiser, foram as marcas que mais patrocinaram festivais em 2023, respectivamente.
E chega a ser escandaloso pensar que, em um cenário onde o segmento de bebidas é o que mais patrocina festivais, foi preciso uma jovem morrer de calor para que produtoras e patrocinadores passassem a garantir gratuitamente água para o público.
Entendam, não quero impelir na discussão a moralidade. Não é questão de ser bonito ou feio, ruim ou bom, ser patrocinado pelo A que desabriga 60 mil pessoas ou pelo B com seu histórico de trabalho análogo à escravidão. Não é esse o ponto. O que proponho aqui é o olhar crítico e, principalmente, atento.
E sim, perguntar aos seus botões: que lugar é esse que uma empresa como a Braskem convence pessoas que gastaram mais da metade de um salário mínimo em um ingresso, que juntar copos plásticos para trocar por mais plástico é a saída?
É…
Para ir bem fundo:
- Os problemas da Heineken com a Justiça - O Bastidor, 2021
- Ambev e Heineken são autuadas por trabalho escravo de imigrantes venezuelanos em São Paulo - El País, 2021
- Trabalho escravo: fabricante da Coca e outros 48 nomes entram na ‘lista suja’ - CUT São Paulo, 2018 - Vale dizer que muitas empresas usam a Justiça para sairem dessa lista. Nesta matéria da Exame (2019) explica bem: Empresas usam Justiça para sair da "lista suja" do trabalho escravo.
- Ministério do Trabalho responsabiliza fabricante da Coca-Cola por trabalho escravo - Repórter Brasil, 2016
- Fazenda de fornecedora da Coca-Cola e dos postos Ipiranga é palco de morte e trabalho escravo - Repórter Brasil, 2022
- Biólogos acusam Coca-Cola de secar nascentes em Minas Gerais - UOL, 2018
- ANM questiona rigor das informações que Braskem forneceu sobre minas - Agência Brasil, 2024
- 'É transformar a pessoa em mercadoria', diz especialista sobre trabalho escravo - O Tempo, 2023
Em 2021, a Heineken tentou construir sua fábica na cidade de Pedro Leopoldo, em Minas Gerais. Acontece que:
Durante uma vistoria técnica, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais identificou violações no processo de licenciamento ambiental nas obras de uma fábrica da Heineken em Minas Gerais, que poderiam soterrar o sítio arqueológico onde foi encontrado o esqueleto mais antigo das Américas, conhecido como Luzia. O MP já havia decidido instaurar um inquérito civil para investigar o caso, após a Repórter Brasil revelar que o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) havia paralisado a construção da cervejaria, que fica próxima ao complexo de grutas e cavernas no Monumento Natural Estadual da Lapa Vermelha, em Pedro Leopoldo, na região metropolitana de Belo Horizonte. - Joyce Cardoso e Daniel Camargos para o Repórter Brasil em 30 de setembro de 2021.
Conforme revelou a reportagem, o ICMBio enviou ofício para o governo mineiro, que já havia concedido a licença prévia para a construção, e aplicou duas multas na Heineken, que somam R$ 83 mil. Os fiscais classificaram de “desconhecidos e imprevisíveis” os impactos que as obras poderiam causar e afirmaram que a caverna onde foi encontrado o crânio de Luzia poderia ser “fatalmente afetada”. O órgão ambiental considerou a concessão da licença ambiental do governo mineiro como “uma grave falha”.
Em entrevista à Folha, o presidente da Heineken Brasil, Mauricio Giamellaro, afirmou que a empresa tem preocupação com temas ambientais. “É óbvio que a gente quer gerar lucro, mas através de respeito […] Sustentabilidade é o novo puro malte”. No primeiro posicionamento à Repórter Brasil, a cervejaria disse que havia fornecido todos os documentos necessários para conseguir a licença ambiental. Já na segunda resposta, enviada após o embargo da obra, a empresa afirmou que suspendeu a atividade de terraplanagem depois da ação dos fiscais.
A Heineken recuou com as obras, mas o governador Zema manteve o diálogo com a empresa e pouco mais de um ano depois veio o anúncio da construção da fábrica agora em Passos, no sul de Minas Gerais.