O tamanho da fonte e a hierarquia nos pôsteres dos festivais de música
Não se engane, há muito mais politicagem e negociação envolvidas na disposição de cada linha de um pôster de festival de música do que você imagina.
Durante o documentário Fyre Festival (Netflix, 2019), além de assistirmos ao caos provocado por egos masculinos e irresponsabilidade sem limites, uma cena chama a atenção: em um canto, o booker Samuel Krost, responsável pelas contratações dos artistas, negocia com algum agente e solta a frase: “quero dizer, é apenas o tamanho de uma fonte”.
Não foi surpresa que, ao buscar sobre o assunto, encontrei artigos que não apenas citam a mesma cena do documentário, mas também destrincham algumas políticas presentes nesse processo. Entenda, fechar um extenso lineup de festivais do tamanho do Coachella, Glastonbury ou Lollapalooza deve ser estressante, mas a arte do pôster, segundo relatos, é um dos pontos mais delicados da indústria de festivais.
Sempre que um festival, internacional ou nacional, divulga seu pôster, críticas e dúvidas surgem em relação à disposição dos nomes nessas artes milimetricamente criadas. Os critérios são nebulosos e, até mesmo, abstratos, mas o que fica claro é que, sim, existe uma hierarquia estabelecida. Não são meras decisões dos promotores dos festivais, mas sim o resultado final de negociações cansativas.
Métricas, métricas e mais métricas
Aparentemente, os festivais seguem abordagens semelhantes: headliners no topo, escritos em fontes maiores, e os demais atos, em ordem decrescente de popularidade, ficam cada vez menores logo abaixo. Claro que não existe uma regra, cada produção acaba criando o seu próprio método e métricas adotadas para tal.
Em 2019, o jornalista Danny Wright escreveu uma matéria para a Vice, onde conseguiu relatos de alguns promoters. Segundo os entrevistados, as principais métricas consideradas na hora de organizar um pôster são: os atos musicais mais importantes para o público do festival, o valor do cachê pago aos artistas, quem está no hype no momento ou em ascensão e, claro, métricas relacionadas à presença digital desse artista, como ouvintes mensais em plataformas de streaming, visualizações no YouTube e seguidores nas redes sociais.
Alguns festivais buscam como solução a ordem alfabética em suas artes de divulgação, evitando assim egos, mas enfrentando possíveis indisposições com os empresários. Outros não deixam as métricas de lado, mas adotam um design que tornam a hierarquia menos evidente.
No entanto, a exemplo do Coachella, que mantém o mesmo formato há mais de 20 anos, “a hierarquia musical é transmitida através de uma avalanche de texto, que varia de gigantes a minúsculas fontes, denotando a relevância dos artistas”.
Em outro artigo bastante completo de 2022, escrito pelo jornalista Ben Lindbergh para a The Ringer, ele ouviu o editor sênior da Stereogum, Tom Breihan, conhecido principalmente por ser um estudioso desses cartazes. Tom diz que “quando vemos os nomes desses artistas dispostos no cartaz, conseguimos ter uma visão fria e clara de quais artistas os produtores dos festivais mais valorizam... As pessoas envolvidas colocaram um trabalho real para descobrirem quais atos musicais são os maiores atrativos”.
Geralmente, no topo, vemos os principais ativos do festival, ou seja, a atração que, provavelmente, será o chamariz para as vendas dos ingressos.
Apesar dos dados estatísticos serem hoje um dos principais argumentos dos dois lados, ou seja, da produção do festival e do agente, o debate também circunda aspectos como a relevância cultural do ato musical, que é delicado e difícil de quantificar, mas também entra na equação. Isso recai sobre outra dificuldade relatada, que é artistas com recente ascensão versus artistas icônicos que estão na indústria há décadas.
Raramente é apenas um tamanho de fonte, como Samuel Krost do Fyre Festival pensava.
Do outro lado
Um aspecto que motiva empresários artísticos e agentes a irem até o fim nas negociações é o fato de que a posição de seu cliente impacta significativamente seu posicionamento no mercado e perante o público, muito mais do que impacta o festival.
Para artistas veteranos, pode ser um golpe no ego estar em uma posição que não reflete a dimensão de sua carreira. Já para artistas em ascensão, pode ser uma oportunidade única para elevar seu cachê em outros festivais e turnês.
Em um artigo da revista New Yorker, publicado em 2017 e escrito por John Seabrook, Paul Tollett, CEO da Goldenvoice, empresa responsável pelo Coachella, é entrevistado. Em um trecho do texto, temos um panorama mais claro sobre o processo de tomada de decisão na criação do pôster e sua importância para os artistas:
Para os artistas, a posição no pôster se traduz diretamente em taxas de contratação. “Os agentes dirão: ‘Eles são uma banda de segunda linha no Coachella!’”, relatou Tollett. Raramente a tipografia foi tão monetizada. Para DJs de E.D.M., em particular, a posição no pôster pode determinar seu preço futuro, não apenas nos Estados Unidos, mas internacionalmente. “Temos tantas discussões sobre tamanhos de fonte,” ele continuou. “Eu literalmente lutei por um ponto de tamanho.”
“Hoje é o dia em que vou dizer a todos os agentes em qual linha sua banda estará,” explicou Tollett. “Parece uma coisa pequena no grande esquema da vida. Mas, em relação a essas bandas, é enorme.” Ele acrescentou: “Nós contratamos, e vai ser ótimo.” Ele parecia estar tentando se convencer.
Um protótipo do pôster estava sobre a mesa. Ele apontou para a segunda linha, no sábado, onde dois DJs populares de E.D.M., DJ Snake e Martin Garrix, e o MC de hip-hop SchoolBoy Q estavam juntos, junto com o astro do rock alternativo Bon Iver e os rappers de Atlanta Gucci Mane e Future.
“Tenho um acúmulo de DJs aqui,” disse Tollett. “O problema é que todos eles querem estar lá.” Ele tocou o lado esquerdo da linha, onde Bon Iver ocupava o lugar de destaque. “Nos velhos tempos, você podia olhar o SoundScan ou Pollstar. Quem vende mais discos? Quem vende mais ingressos? Mas os DJs não fazem concertos. E esses caras do hip-hop – alguns deles só tocam em raves e grandes eventos em clubes de dança,” os chamados shows de “ingressos suaves”, nos quais o artista é apenas uma parte do pacote. Em vez de números concretos, os DJs usam métricas baseadas em mídias sociais para medir sua popularidade: amigos no Facebook, seguidores no Twitter, visualizações no YouTube.
“A terceira linha é a mais difícil,” continuou Tollett, ajustando seu boné dos Kings. “Com alguém como Justice ou New Order, você sabe que eles são sólidos.” O grupo francês de techno e a banda britânica de New Wave eram dois dos ocupantes da segunda linha de domingo. “Marshmello?” – um DJ mascarado de E.D.M. na terceira linha, cuja identidade é ocultada por um capacete com um emoji de aparência enlouquecida. “Poderia ser uma linha dois, porque ele tem estatísticas malucas,” disse Tollett enquanto batia no pôster com a borracha de um lápis.
“Vinte anos atrás, artistas alternativos cresciam mais devagar,” ele continuou. “Mas não há mais underground. É tudo meio pop, de certa forma, e sobe rapidamente por causa do SoundCloud. Alguns desses artistas obtêm estatísticas em um período de seis semanas que são simplesmente malucas. Faço uma oferta para bandas pequenas, e em seis meses o mundo pode mudar tanto para elas. Ou você as contrata no auge e seus números estão caindo a cada dia. É como jogar. Ir a curto, ir a longo prazo. Estamos apostando a longo prazo no Marshmello.”
Tollett sabia que estava mostrando sua idade ao continuar a colocar bandas de rock como Radiohead como headliners, quando os jovens prefeririam ver os shows de E.D.M. nas tendas Sahara e Mojave, as grandes tendas. “Quando você pega uma banda de indie-rock, cinco ou seis membros, nem todos estão no mi bemol sétimo ao mesmo tempo, então não soa perfeito,” ele disse. “Com música eletrônica, é pré-programada, então soa impecável. Não há erros. Há uma geração acostumada ao impecável, e quando não ouvem impecável, pode parecer ruim para eles.”
O laptop de Tollett mostrava os seis palcos do Coachella, representados por cores diferentes no Excel, para os slots das 12h à meia-noite de cada um dos três dias. (O cronograma seria divulgado mais tarde.) A tonalidade se aprofundava com a hora. “Todos querem tocar no escuro, para poder usar toda a sua produção,” continuou Tollett. “Mas nem todos vão conseguir tocar no escuro. E nem todos precisam do escuro.” O rocker indie cross-dressing Ezra Furman, que é um judeu observante, precisava estar em uma sinagoga antes do pôr do sol na sexta-feira, e o sábado estava obviamente fora.
Um dos agentes, Joel Zimmerman, da W.M.E., estava tão determinado a obter uma posição favorável para seu cliente, Martin Garrix, um DJ holandês de E.D.M. de vinte anos, que estava vindo de seu escritório em Beverly Hills. A assistente de Tollett, Morgan Donly, leu em voz alta um e-mail que Zimmerman havia enviado no caminho: “’Fontes online mostram que Garrix mantém seus níveis de Calvin e está lançando mais músicas este mês.’”
“’Níveis de Calvin!’” Tollett nunca tinha ouvido o DJ superstar de E.D.M. Calvin Harris ser usado como superlativo antes.
Donly relatou outras métricas: “’Independentemente, suas redes sociais são quatro vezes maiores e ele está no top um por cento dos artistas mais conectados com sua base de fãs.’”
Logo Zimmerman chegou. “Todos os artistas estão no Insta,” ele disse, um pouco sem fôlego, sentando-se ao lado de Tollett. “É a plataforma. Antes disso, era o Twitter, e antes disso era o Facebook. Martin tem dez milhões, e o outro cara”—o agente astuto não queria usar o nome de Snake—“tem três milhões. E Martin tem setenta a oitenta por cento de engajamento. Para mim, isso é um ótimo indicador.”
Algumas controvérsias
Em 2019, a cantora Janet Jackson publicou em suas redes sociais um cartaz do festival Glastonbury onde ela aparecia como a primeira headliner daquela edição. No entanto, nas redes oficiais do festival, seu nome aparecia como a quinta headliner.
Ninguém conseguiu apurar se a versão de Janet foi feita pelo próprio Glastonbury ou pela equipe da cantora.
No ano anterior, em 2018, o rapper 2 Chainz foi às suas redes sociais questionar a produção do Governors Ball sobre seu lugar no pôster.
Seguindo apenas uma métrica
A Charmetric fez um exercício interessante: reorganizou o lineup do Coachella 2024 baseado nos ouvintes mensais do Spotify. Veja o resultado:
No Brasil tem disso?
Os festivais brasileiros também parecem seguir alguns padrões na criação de seus pôsteres.
Em festivais como Lollapalooza e Primavera Sound, que nasceram em outros países, os modelos seguem os de suas matrizes, onde a hierarquia dos atos musicais é bem clara.
Outros eventos, como o CoMA e o Coala, apesar de criarem uma ordem das atrações, mantêm o tamanho da fonte igual para todos os atos musicais, deixando a ideia de hierarquia mais sutil. É o caso do Popload Festival, que até adota tamanhos distintos de fontes, mas busca também a sutileza (confesso que o DJ set do fundador do festival, com o mesmo tamanho de fonte de artistas com carreira, me incomoda, mas isso sou eu sendo implicante).
Já o Queremos e o C6 Fest adotam a ordem alfabética.
Já o Rock in Rio
O Rock in Rio não divulga um pôster oficial com todos os nomes, mas em seu site vemos a disposição das atrações atrelada ao cronograma dos shows e divididas por palcos.
O caso das críticas ao Rock in Rio tem muito mais a ver com a escolha dos artistas e seus respectivos palcos do que com o pôster. Este ano, por exemplo, temos o curioso caso de Luísa Sonza, que tocou no último Rock in Rio Brasil, The Town e Rock in Rio Lisboa no início de junho, abrindo o Palco Mundo, enquanto Shawn Mendes, que esteve no país em 2019, fechará o principal palco do evento. Enquanto isso, Mariah Carey, que possui um legado inegável na música pop mundial e não pisa em solo brasileiro para realizar shows há 14 anos, encerra o Palco Sunset. Embora a organização esteja frisando que o Sunset aumentou de tamanho, para mim, denota que a curadoria do Rock in Rio segue sendo, no mínimo, curiosa.
Existe meio termo?
Ferramentas como Charmetric e Pollstar são bastante utilizadas pelos produtores para criar toda essa engenharia dos pôsteres. No entanto, mesmo com tantos dados, criar uma equação exata é uma missão impossível. Seja por conta da “politicagem” exacerbada presente nas negociações, egos dos artistas e seus agentes, ou a percepção da produção sobre o que é legado ou sucesso.
Talvez o caminho do meio seja, de fato, a ordem alfabética, mas em festivais do tamanho do Lollapalooza e Coachella, onde as atrações muitas vezes passam de 100, essa decisão está longe de ser o meio-termo ideal do ponto de vista do design. Seria uma tarefa árdua destacar os atos musicais que estão ali, muitas vezes, para impulsionar as vendas de ingressos do evento.
Para ir mais fundo:
- How Do Festivals Pick the Order of Their Posters?
- ‘My Font Size Is What?!’: Where & How Big Artist Names Appear on Festival Posters Can Be a Battle
- The behind-the-scenes politics of music festival posters, from Coachella to Osheaga
- Tiny fonts and big egos: the nasty politics of festival lineup orders
- The Hidden Art of Ordering the Names on a Festival Line-up
- Size Matters: Inside the Politics of Festival Posters
- Chartmetric Coachella Posters
- Anitta canta no Coachella nesta sexta-feira: qual a importância de se apresentar no festival?
- The Mastermind Behind Coachella
- Janet Jackson Bumps Herself Up On The Glastonbury Poster
- 2 Chainz Is Mad About His Spot On The Governors Ball Poster
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