Quanto custa tirar um festival da lama?

O REP Festival quer a redenção

Quanto custa tirar um festival da lama?
REP Festival 2023 (Reprodução/Redes Sociais)

Em entrevista recente, Cléber Junior, CEO da Agência Somma, empresa responsável pela execução do Rep Festival, falou sobre o futuro do evento. Segundo ele, 2024 será a edição da redenção, momento de executar o que a lama, literalmente, destruiu em 2023.

O REP Festival se posiciona no mercado como o "maior festival de Rap do Brasil". Seu criador, Fabricio Stofel, disse que quando concebeu o projeto, em 2019, não havia nada parecido e enxergou uma oportunidade no movimento cultural que completou 50 anos de existência em 2023, sendo 30 só no Brasil,

Um Google rápido sobre o evento é possível ler notícias sobre insalubridade, vereador acusado de estupro no palco, descaso com público e artista, e até alcunha de Fyre Festival BR, tal qual o caótico festival de música dos EUA. Com uma gestão de crise frágil e excesso de resiliência, o REP Festival promete voltar.


Mesmo com o posicionamento de "maior festival do Brasil", foi apenas na edição de 2023 que o REP Festival recebeu atenção massiva. Os motivos foram os mais diversos, desde as grandes parcerias firmadas, investimento agressivo em marketing, passando pela curadoria, divulgação de troca do local com apenas dez dias de antecedência do início do festival, e culminando em uma infraestrutura insalubre para trabalhadores e público em uma semana de fortes chuvas no Rio de Janeiro.

Toda a repercussão e ruído que foram gerados fez reacender antigos debates e conversas. Minha proposta aqui não é esgotar nenhum desses assuntos, muito pelo contrário, quero colaborar com a expansão deles e trazer um panorama sobre o festival e o Rap.


Quem criou o Rep Festival? Quem conta é Fabricio Stofel, em entrevista ao PodGringo, em 26 de set. de 2022.

Segundo relatório anual da Nielsen Music, em 2017, pela primeira vez na história (- ou desde quando os dados começaram a ser coletados), o R&B/Hip-Hop foi o gênero musical mais consumido dos Estados Unidos. Em 2018, no Brasil, foi ano dos álbuns Bluesman, do Baco Exu do Blues, e O menino que queria ser Deus, do Djonga. Nomes como Matuê, Xamã e Poze do Rodo começaram a ser frequentes no Top 50 Brasil do Spotify.

Em agosto de 2023, o Spotify publicou o seguinte:

“In 2023 to date, the Top 10 markets for hip-hop streams on Spotify are . . .
  1. USA
  2. Mexico
  3. Brazil
  4. Germany
  5. France
  6. UK
  7. Spain
  8. India
  9. Canada
  10. Italy”

Não havia momento melhor mesmo para um festival apenas de Rap.

Para além da sofitiscação e excelência presente nos trabalhos musicais que se destacaram em 2018 e nos anos seguintes, vale destacar que a indústria fonográfica ocidental ainda repercute muito do que é o consumo musical dos Estados Unidos (- embora eu ache que isso esteja ruindo, mas é papo para outra hora), ou seja, o cenário de lá refletiu em um crescimento consistente do Hip-Hop no mercado musical brasileiro.


Segundo, Fabricio, ele trabalha com o Rap desde o início, desde quando o Rap era marginalizado. Desde 2011.

Acho que vale aqui um breve contexto histórico sobre o Rap, sobretudo o Rap do Rio de Janeiro, para que a gente compreenda qual cena o Stofel encontrou.

Para isso, utilizei como guia teórico a tese de doutorado de Gabriel Gutierrez e o livro Acorda Hip-Hop!, escrito por DJ TR.

O Hip-Hop é um efeito colateral sociocultural e estético das mudanças estruturais e políticas pelas quais a cidade de Nova Iorque passou no período pós-industrial (GUTIERREZ, 2016). No Brasil, o Hip-Hop foi efeito colateral do neoliberalismo dos governos FHC nos anos 90, que levou as desigualdades à níveis extremos, sobretudo nas metropóles.

O Rap que chegou ao Brasil, a partir dos anos 1980, foi, principalmente, o Rap de Nova Iorque, com destaque para sua versão afrocêntrica, e o Rap Gangsta originário de Los Angeles. Essas foram as duas vertentes mais internacionalizadas naquele momento através da MTV, videoclipes, filmes e comerciais.

No caso do Rio de Janeiro, especificamente, o Miami Bass, subgênero vindo dos bairros majoritariamente negros de Miami, também influenciou o Rap carioca. Foi essa sonoridade que manteve o Rap próximo ao Funk Carioca, que por sua vez já era gestado nos bailes blacks, através do Soul e Disco, desde os anos 1970.

Nesse primeiro momento do Rap carioca não podemos considerá-lo ainda como uma prática social de grandes contingentes. Pois, entre o final dos anos de 1980 e o início dos 1990, o Rap era restrito à pessoas e associações comunitárias interessadas no movimento Hip-Hop.

O nascimento artístico do Rap carioca foi resultado das sociabilidades espontâneas e articulações oriundas de dinâmicas culturais espalhadas pela cidade, e conectadas através do Funk e movimento Hip-Hop em sua totalidade.

O primeiro registro fonográfico do Rap RJ foi fruto de uma dessas articulações. A ATCON (Associação Atitude Consciente) se reuniu no CEAP (Centro de Articulação de Populações Marginalizadas) para realizar o que viria a ser o primeiro disco do RAP RJ. Produzido por Mayrton Bahia, e lançado por seu selo, o Radical Records, a coletânea Tiro Inicial, foi lançada em 1993.

No registro, encontramos sete trabalhos autorais diferentes. Uma documentação de uma cena que começava a se articular na cidade. Estão na coletânea: Filhos do Gueto (Gas. Pa e Caê MC), Consciência Urbana (DJ Leandro Neurose e Big Richard), Geração Futuro (M.V Bill, Michel M.V e DJ T.R), Poesia Sobre Ruínas (R1 e R2), N.A.T. (Reverendo, Buiu da 12 e Alexandre), Damas do Rap (Ed Wheeller, Patrícia Dias e Raquel Rosa) e Gabriel O Pensador.

Apesar de Tiro Inicial ser um marco, o rosto do Rap RJ que ganhou projeção nacional foi o de Gabriel O Pensador.

Conforme os anos 1990 avançaram para o século XXI, o centro do Rio se transformou em espaço aglutinador dessa cena. Especialmente a partir de 1995, na Lapa.

A Festa Zoeira, criada em 1998, pela produtora e fotógrafa Elza Cohen, foi território fértil para que a cena se articulasse e pessoas se encontrassem. Acontecia na Rua Riachuelo, altura do número 19, no Sinuca Arcos da Lapa. Depois, mudou para a Galeria Severo 172 até encerrar suas atividades em 2001, quando residia na Rua do Riachuelo 73. Com o fim da sua principal festa, a cena voltou para a rua.

Em 2002, o filme 8 Mile, protagonizado por Eminem, popularizou as batalhas de rimas e nesse ensejo a Batalha do Real, na Lapa, nasceu e se transformou, ao longo de suas edições, em um verdadeiro catalisador de uma nova geração de rappers a nível nacional.

E chegamos em 2010, quando o Rap no RJ se fragmentou através das Rodas Culturais. Metodologias replicáveis, que aconteciam para além do centro, ou territórios periféricos, agora o Rap estava em lugares da cidade, que a classe média carioca conseguia acessar. As rodas promoviam batalhas de conhecimento, e tudo o que orbitava a música, ou seja, a dança, as roupas, e etc.

No final dos anos 1990, Herchmann já sinalizava que, apesar da marcante presença de questões políticas em suas músicas e performance, muito do Rap feito no Rio de Janeiro, não tinha como cerne a política, ou o que é lido como político. O Rap RJ configurou-se como uma linguagem musical e uma prática cultural atravessada por uma cidade duramente desigual.

“A partir de diversos vetores socioculturais e geográficos, de diferentes padrões de interação com o poder público, distintos graus de organização econômica e de uma infinidade de sociabilidades gestadas pelas tramas da vida urbana contemporânea, o Rap carioca tornou-se indiscutivelmente diverso. É dificil definir dentro dessas múltiplas facetas, uma essência única, principalmente vinculada a um compromisso político ." (Herchmann)

A cena que Stofel encontrou em 2011 se constituiu através de um complexo processo que acontecia há pelo menos 30 anos.

O Rap Nacional foi gestado e alavancado por pessoas, ou descendentes de pessoas, que sofrem diretamente a ação do racismo estrutural brasileiro. Mas quem mais prosperou e prospera com o gênero, de verdade mesmo, é quem não faz parte desse recorte.


O REP Festival

As rodas findaram em 2018. No ano seguinte o Rep Festival nasce e prospera em um cenário onde festivais como Hútuz já havia acabado, e Back2Black, criado e dirigido por uma executiva europeia “entusiasa da música negra”, não recebia ainda grandes patrocínios, ou seja, não havia outro grande evento dedicado ao Rap no Rio de Janeiro. E mesmo sem nenhum mercado sustentável na base de uma cena, ainda sim o Rio de Janeiro não parou de projetar nomes em escala nacional.

As duas primeiras edições, em 2019 e 2020, aconteceram na Cidade das Artes com apenas um dia de atrações.

Em 2021, o festival não aconteceu, mas em 2022 ele cresceu em número de atrações, dias e tamanho do local, além de receber patrocínios da Tiger e Kenner.

“Em sua terceira edição [2022], o REP Festival volta com significativas mudanças. Inicialmente realizado na Cidade das Artes, ele iria este ano para o Riocentro. No entanto, a procura por ingressos em todo o Brasil fez com que os produtores optassem por transferi-lo para o Parque dos Atletas e abrir uma data extra: ele acontece não só este sábado, mas no domingo, com a mesma programação, encabeçada por Matuê, Baco Exu do Blues, Djonga, BK, Filipe Ret, L7nnon, Xamã e Black Alien.” - O Globo

Além da “virada” de proporção em 2022, a edição recebeu inúmeras críticas. Por que?

Segundo os relatos, os prestadores de serviço, que foram terceirizados, trabalharam longas jornadas, sem remuneração adequada, e encontraram dificuldades para acessar alimentação e água durante o período de trabalho. Sobre as denúncias publicadas em 20/02/2022 pelo TAB Uol, com apuração do jornalista Valmir Moratelli, os responsáveis pelo REP Festival não se pronunciaram.

Em entrevista para o jornalista Ronald Rios, no podcast RAP, falando, a artista Clara Lima também expôs más condições de trabalho, e comentou sobre o cancelamento do seu próprio show que aconteceu horas antes, sobre o perfil do público presente no evento e como foi a tratativa com a produção.

Além das denúncias expostas pelo Uol e Clara Lima, outra coisa que chamou atenção da mídia e do público foi a presença do ex-vereador e PM Gabriel Monteiro, acusado e preso por estupro, no palco do festival.

Na ocasião, o artista NAAN convidou Gabriel a se retirar do palco:

“Se você não gosta dos nossos componentes, não venha ao show, não frequente o rap, tá ligado? Isso é evento de rap. Tem uma pessoa que está aqui, todos sabemos quem é, que não gosta do que fazemos. E isso nos incomoda, a gente não "fecha" com isso. O show vai continuar quando essa pessoa sair do nosso backstage, do nosso palco” - afirmou o rapper NAAN.

Stofel explica que para alcançar números e a projeção que o REP Festival atingiu em sua terceira edição foi necessário “quebrar muita cabeça” antes.

Ele explica:

É verdade que o Rap carioca até então não possuía um mercado consistente, mas quando Stofel diz que antes do REP Festival esse cenário “quase não existia”, ele ignora os primeiros festivais produzidos pelas associações comunitárias, ONGs, festas como a Zoeira e a Hip Hop Rio, produzida por Marcelo D2, e as rodas culturais, que foi palco para profissionalizar artistas e produtores.

Além disso, o Hip-Hop nasceu como meio de sobrevivência material, as festas sempre foram meio de subsistência para quem se envolvia com o Hip-Hop. O próprio Afrika Bambaataa, que ganhava a vida como DJ, caracteriza os pioneiros, então fascinados com o fato de estarem ganhando algum dinheiro com aquela cultura, como "jovens empreendedores" (GOSA, 2015, p.62), muito antes da retórica neoliberal do empreendedorismo popularizar este termo entre as classes trabalhadoras. Mais ainda, o autor chega a nomear o "empreendedorismo de rua" como o sexto elemento da cultura Hip-Hop, associando-o à necessidade material urgente e inescapável daquelas pessoas, que precisavam de qualquer forma conseguir alguma renda para sobreviver na condição de formalmente desempregado. O Rap, desde o seu nascimento, foi sustento para o povo preto.

Precisamos olhar criticamente para a lógica estrutural que coloca o Hip-Hop para os pretos, e pretas, como ação social, e para o branco como oportunidade de negócio.


A edição de 2023

Os principais patrocinadores da edição de 2023 foram Amazon Music, Kenner, Filtr, selo da Sony Music, e Tiger. E quando o lineup da edição 2023 foi divulgado, um nome chamou atenção do público: Luisa Sonza. Com um processo de racismo que ela carregou durante quatro anos, a artista foi escalada provavelmente para divulgar o novo feat. com Xamã, uma das atrações do festival. Luisa já era artista Sony e Xamã havia recém assinado um contrato para um projeto especial com a gravadora.

A pressão do público, de influenciadores e artistas como Flora Matos, que também estava na programação, fez a curadoria do festival recuar e substituir Luisa Sonza por Don L.

O local escolhido e divulgado durante meses foi o Parque dos Atletas, mas no dia 2 de fevereiro, a produção divulgou uma troca de endereço.

“Faltando 10 dias para a realização da sua quarta edição, o REP Festival anunciou na quarta-feira a mudança de sua Cidade do Rap (que na edição de 2022 estava no Parque dos Atletas, na Barra) para um terreno de 240 mil metros quadrados em Guaratiba, na Av. Dom João IV, após a estação Mato Alto do BRT (continuação da Av das Américas, sentido Zona Oeste)” - O Globo

Logo após o anúncio, muitas pessoas, por motivos óbvios, solicitaram a devolução do valor dos ingressos. No perfil do festival no Reclame Aqui, é possível encontrar reclamações de pessoas desde a data da divulgação da mudança.

Segundo Cléber, CEO da Somma, a mudança de local não foi visando lucro, mas sim para comportar o público que cresceu.

A expectativa era receber mais de 100 mil pessoas ao longo dos dois dias de festival. Mas,

“com a estrutura inacabada, o primeiro e único dia de apresentações, [no] sábado, foi marcado por atrasos, filas nos ônibus, lama e até animais silvestres, como cobras, rãs e sapos. Depois da chuva que varou noite a dentro e a repercussão negativa entre os internautas, os shows de domingo foram cancelados. Em comunicado, a organização afirmou que a decisão foi tomada pensando na segurança do público, dos artistas e da equipe técnica.” - O Globo

Poucos dias depois, Rafael Liporace, também sócio do Rep Festival e do Tardezinha, pediu desculpas.

Liporace usou as redes sociais para se manifestar, para pedir desculpas ao público e aos artistas. Em um vídeo, publicado na conta do Instagram do produtor, ele contou que a equipe foi informada de "possíveis problemas" no Parque Olímpico um mês antes da realização do evento. Neste momento, segundo Liporace, 85 mil pessoas já haviam adquirido entradas para os dois dias de shows.

A prefeitura, porém, não havia autorizado o uso do local para a festa. Com isso, foi preciso mudar o endereço para Barra de Guaratiba. "Aí vocês me perguntam: por que não abrimos venda só com o local assinado em contrato? Porque não é essa a dinâmica de eventos no Rio de Janeiro. E a gente não pode ir contra o sistema", explicou Rafael, alegando que as duas últimas edições do festival também tiveram venda de ingressos aberta sem a devida autorização do espaço pelas autoridades públicas.” - O Globo

No entanto, O Globo apurou que a produção sabia há pelo menos sete meses que o evento não poderia acontecer no Parque Olímpico.

“a Prefeitura do Rio de Janeiro informou ter recebido o primeiro contato da produção, solicitando o espaço, em maio de 2022. O pedido, negado cerca de um mês depois, foi novamente recusado em janeiro deste ano, quando os produtores fizeram mais um requerimento. Segundo a prefeitura, "em 7 de janeiro de 2023, a organização fez uma nova solicitação para realizá-lo no Parque Olímpico e, dez dias após, recebeu outra negativa municipal". Com a segunda recusa, a equipe deu entrada para que o evento acontecesse em Barra de Guaratiba, também na Zona Oeste da cidade, em 26 de janeiro. Menos de duas semanas para o primeiro dia de apresentações, o REP Festival comunicou a mudança de local, 28 km distante do endereço divulgado inicialmente.

Em nota, o governo destacou que "o alvará [para Barra de Guaratiba] foi deferido na sexta-feira (10/02), após o cumprimento de todas as exigências dos órgãos". O município reiterou ainda não ser "patrocinador do REP Festival", e que "não determina o local onde um evento deve ocorrer, premissa que é dos respectivos organizadores".” - O Globo

No Reclame Aqui é possível ler relatos recentes de pessoas que ainda não receberam reembolso do ingresso referente ao dia cancelado. Sobre o sábado, o REP Festival entendeu que “entregou” o evento.

O Portal RAP MAIS tem acompanhado e já trouxe algumas atualizações sobre o assunto.


Em outubro, o podcast Meu Negócio é Diversão, publicou uma entrevista com Cléber Junior, o CEO que já foi citado anteriormente por aqui.

O relato de Cléber sobre tudo o que aconteceu tem muitas camadas. Para ele, a resiliência foi primordial por parte das pessoas envolvidas, pois o objetivo sempre foi realizar o evento e ele foi “entregue”. Os principais fatores para o fracasso do festival que ele destaca foram a chuva e o local que precisou ser alterado, fator que reduziu o tempo hábil para montagem da estrutura.

Ao longo da entrevista ele fala também sobre o alívio de ter recebido telefonemas de pessoas importantes do mercado se solidarizando, pois conheciam o histórico positivo do festival. O público? Apenas se frustrou, segundo ele. O que sustenta a ideia que o cliente final de um festival é o patrocinador e não o público.

Para 2024, Cléber adianta que há parceria com uma gigante do entretenimento, e que será a redenção. A edição será grandiosa e está prevista ainda para o primeiro semestre do próximo ano. Uma grande celebração ao REP.


Para ir mais fundo: