Spotify: artistas falsos e desinformação eleitoral

O vasto catálogo do Spotify inclui músicas que disseminam desinformação sobre o sistema eleitoral brasileiro e compositores fantasmas.

Spotify: artistas falsos e desinformação eleitoral
Spotify (Reprodução)

Eleições e a responsabilidade das DSPs

O Intercept Brasil publicou uma reportagem sobre a faixa "Pagode do Barroso", do músico Boca Nervosa, nome artístico de Edmar Marques da Silva.

Segundo a apuração do jornalista Paulo Motoryn, o Spotify estaria recomendando a faixa para ouvintes que utilizam a sugestão automática da plataforma.

O que poderia ser apenas mais um pagode tocado após um Zeca Pagodinho chamou atenção pelo teor da letra:

“Xandão tem toda culpa de o Brasil ficar desconfiado. É eles mesmos que fazem a contagem que faz o resultado da apuração. Ninguém mais pode desconfiar das urnas, virou um crime na nossa nação. Perdeu mané, o povo tá desconfiado e ninguém mais bota fé nesse TSE”.

A música, que questiona e coloca em xeque o processo eleitoral, está presente no álbum Pagode da Consciência, lançado em 3 de setembro de 2023 pelo selo Radar Records, e não é a única com esse teor. Além de "Pagode do Barroso", o álbum conta também com a faixa "Pagode do Bolsonaro Inelegível":

“Vocês levaram dessa vez essa eleição. Juntando todos os partidos, vai pensar o capitão. Teve apoio do TSE e do Xandão. De Instituto de Pesquisa, e toda a mídia que apoia ladrão. Nesse jeito nem Jesus ganharia essa eleição”

O Spotify se importa?

Vale lembrar que, em maio de 2022, o Spotify aderiu ao Programa de Enfrentamento à Desinformação junto ao TSE, implementando medidas concretas contra os efeitos negativos da desinformação no processo eleitoral brasileiro. No entanto, ao consultar o memorando dessa parceria, é possível notar que essa ação foi pontual para as eleições de 2022, conforme descrito na cláusula de duração:

CLÁUSULA SEGUNDA: DURAÇÃO

O presente MEMORANDO vigorará por prazo determinado, com início a partir da sua data de assinatura e encerramento em 31/12/2022, após o fim do ciclo eleitoral, sem prejuízo do desenvolvimento contínuo de ações de comum acordo entre as PARTES no âmbito do Programa de Enfrentamento à Desinformação.

Mesmo com o término dessa parceria, o Spotify possui regras próprias relacionadas a conteúdos políticos. Mas será que essas regras são seguidas?

Em agosto de 2023, o Aos Fatos apurou que, para o Spotify, o podcast Guerra da Informação do foragido Allan dos Santos (que ainda está no ar), repleto de “informações falsas sobre o sistema eleitoral brasileiro, ataques reiterados a autoridades e mentiras sobre a pandemia de Covid-19”, não viola as regras da plataforma.

É possível denunciar?

Não é possível denunciar uma faixa única, apenas o álbum. No entanto, não há nenhum motivo específico relacionado à desinformação, apenas a golpes. Caso deseje explicitar outra razão, existe um formulário extenso e complicado, ou seja, o processo não é simples nem intuitivo dentro do aplicativo.

"Pagode do Barroso" também está disponível na Apple Music, YouTube Music e Deezer.

O Intercept contatou o Spotify sobre a música de Boca Nervosa. “Por meio de uma ligação telefônica, um assessor de imprensa da empresa me disse que a plataforma 'revisou o conteúdo das músicas mencionadas' e, mesmo assim, optou pela manutenção das faixas em seu serviço. Pedi a eles um comunicado público com essa informação, mas eles não aceitaram nos enviar. Mesmo assim, o espaço segue aberto para manifestações.”

Quem é Boca Nervosa?

Natural de Olímpia, no interior de São Paulo, Boca Nervosa tem quase 40 anos de carreira no pagode. Chegou a fazer breves participações em programas televisivos, como os de Jô Soares e de Tom Cavalcante, por causa de suas músicas com letras satíricas.

Atualmente, Boca Nervosa parece trabalhar compondo e vendendo jingles políticos e “pagodes satíricos”. Além disso, ele está diariamente no ar com um programa na Rádio Nova Difusora FM, de Osasco, cujo proprietário é o advogado e radialista Francisco Rossi, ex-prefeito de Osasco.

Francisco é filiado ao PL (quem poderia imaginar?) e pai da vereadora Ana Paula Rossi, também filiada ao PL.

Uma das últimas postagens de Francisco refere-se a um trecho de seu programa na rádio, onde apoia o candidato à prefeitura de São Paulo, Pablo Marçal.

Quem também apoia Marçal é Boca Nervosa, que compôs recentemente um pagode para o lunátic... digo, candidato.


Artistas fantasmas

Para muitos, não é novidade o caso dos “artistas fantasmas” no Spotify. O Music Business Worldwide já havia reportado em 2016 sobre o Spotify criando seus próprios discos e os colocando em suas playlists editoriais.

A polêmica prática voltou a ganhar repercussão em 2022, quando o jornal sueco Dagens Nyether (DN) expôs uma lista com 830 nomes de compositores “falsos” ligados à gravadora sueca Firefly Entertainment, dos quais pelo menos 495 estavam presentes em playlists editoriais do Spotify.

Em um novo relatório publicado em março deste ano pelo DN, e repercutido pelo MBW, foi revelado que o principal compositor por trás desses artistas falsos é o sueco Johan Ruhr, que lançou canções sob o nome de 656 artistas diferentes e inventados.

De acordo com o DN, considerando todos os pseudônimos de Ruhr, ele soma 15 bilhões de reproduções, o que o torna um dos 100 artistas mais ouvidos no Spotify, à frente de nomes como Metallica e Mariah Carey. Esses números são impulsionados, sem dúvida, pela presença em “pelo menos” 144 playlists editoriais do Spotify.

O DN entrou em contato com Johan Ruhr para uma entrevista, mas ele direcionou o pedido para a gravadora que lança suas músicas, a Overtone Studios, com sede na Suécia e de propriedade da Epidemic Sound. Sim, ela mesma.

No Brasil, o Núcleo fez uma apuração recente e detalhada sobre o tamanho desse problema, focando nos “artistas falsos” de jazz.